Publicidade, humanização e direito à informação: a justiça sistêmica como mecanismo de integração desses preceitos no HC-UFU
Por: Bruno Pereira de Carvalho
Por: Bruno Pereira de Carvalho
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA BRUNO PEREIRA DE CARVALHO PUBLICIDADE, HUMANIZAÇÃO E DIREITO À INFORMAÇÃO: A JUSTIÇA SISTÊMICA COMO MECANISMO DE INTEGRAÇÃO DESSES PRECEITOS NO HC-UFU Uberlândia 2021 BRUNO PEREIRA DE CARVALHO PUBLICIDADE, HUMANIZAÇÃO E DIREITO À INFORMAÇÃO: A JUSTIÇA SISTÊMICA COMO MECANISMO DE INTEGRAÇÃO DESSES PRECEITOS NO HC-UFU Artigo apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito, pela Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade de Direito Professor Jacy de Assis. Orientadora: Profa. Dra. Shirlei Silmara de Freitas Mello Uberlândia 2021 RESUMO O presente estudo visa analisar alternativas para a grande incidência de casos relacionados à falta de boas práticas de atendimento e acompanhamento, bem como à falta de transparência e humanização do atendimento, o que foi entendido como um problema, por meio de análise documental realizada na ouvidoria do Hospital de Clínicas da UFU. A postura dos agentes públicos da instituição, apesar de muitas vezes ser ingênua e despretensiosa, causa impactos no sistema em decorrência, principalmente, do descuido na observação dos fundamentos da Constelação Sistêmica que são: ordem, equilíbrio e pertencimento. Portanto observou-se que a autopercepção deturpada dos agentes públicos causa erros de posicionamento dentro do órgão, ou seja, distorcem a ordem existente na hierarquia e afrontam a relação do que é próprio e o que é do outro. Segundo a análise grande parte do que foi registrado como negativo, conforme visão dos manifestantes da ouvidoria, pode ser explicado e corrigido dentro da visão Sistêmica. Palavras-chave: Publicidade. Humanização. Informação. Justiça Sistêmica. ABSTRACT The present study aims to analyze alternatives for the high incidence of cases related to the lack of good care and follow-up practices, as well as the lack of transparency and humanization of care, which was understood as a problem, through documentary analysis carried out at the ombudsman's office. at the UFU Hospital de Clínicas. The posture of the institution's public agents, despite being often naive and unpretentious, causes impacts on the system due mainly to carelessness in observing the fundamentals of the Systemic Constellation, which are: order, balance and belonging. Therefore, it was observed that the misrepresented self-perception of public agents causes positioning errors within the body, that is, they distort the existing order in the hierarchy and face the relationship between what is proper and what is of the other. According to the analysis, a large part of what was recorded as negative, as seen by the ombudsman's protesters, can be explained and corrected within the Systemic view. Keywords: Publicity. Humanization. Information. Systemic Justice. Sumário 1 INTRODUÇÃO 6 2 PUBLICIDADE, HUMANIZAÇÃO E DIREITO À INFORMAÇÃO 8 3 O CASO DO HOSPITAL DE CLÍNICAS DA UFU E A METOLOGIA DE ANÁLISE 12 4 NECESSIDADE DE UMA MENTALIDADE SISTÊMICA 13 4.1 DESENVOLVIMENTO DO PENSAR SISTÊMICO E SUAS IMPLICAÇÕES PRÁTICAS 17 5 CONCLUSÃO 20 Anexo I 22 REFERÊNCIAS 23 1 INTRODUÇÃO Como ciência social aplicada, o Direito é um instrumento de compreensão e modulação das relações humanas, regulando como são feitas as inter-relações entre seres humanos, bem como suas relações com o mundo à sua volta. Por ser meio de controle e formação de regras que coordenam a vida em sociedade, esta ciência é enraizada por princípios e preceitos que servem como guia aos aplicadores e legisladores. Através deste meio lógico de organização normativa, aqui se depreendendo a sua acepção mais ampla, ou seja, em caráter não restrito à ciência jurídica, mas como regras de convívio, instituiu-se o Estado como agente regulador e mantenedor da ordem e do sistema, em prol, sempre, do bem comum daqueles que se encontram sob sua implacável égide. Este, por sua vez, é gestor das liberalidades que cada ser possui, tomando para si a atribuição de escolher o que é melhor ao seu povo (REALE, 2002, p.122-123). Sendo gestor do patrimônio e da liberdade de cada um, o Estado possui obrigações quanto à sua própria autonomia de vontade, fazendo-se necessário cumprir requisitos estritos para sua atuação e, ademais, o seu povo tem a garantia de acesso ao que está sendo feito, pois o Estado é gestor de patrimônio alheio, do qual seu povo é detentor, sendo tal ente criado para centralizar a gestão, sem atrair para si a propriedade absoluta do todo. A publicidade e o direito à informação foram, por muito tempo, tolhidos aos que o invocavam. São meios ativos para desenvolver o que se pode chamar de democracia participativa, na qual há integração e controle por parte daqueles que não foram eleitos, e assim realizam individual fiscalização. Árduo é encontrar exemplo de Administração Pública bem sucedida sem que houvesse a implementação do controle social de maneira mais ampla. Todavia, não se podem apostar todas as cartas na ideia de que essa seria a salvação para qualquer sistema, pois existem inúmeros outros fatores que contribuem para o alcance da plenitude funcional de uma organização estatal, em termos de sociedade. Além de todo aparelhamento legal que se possa criar para aperfeiçoar as organizações públicas, existem preceitos deontológicos que precisam ser, de alguma forma, insertos na consciência do povo para que as normas, agora em sentido estrito, possam obter eficácia social plena (CARVALHO FILHO, 2018, p.88-89). Haja vista o constante atendimento à figura humana, o Estado existe em prol, de modo bem simplista, à existência, proteção e amparo do povo que o compõe, deste modo surge a necessidade de se ter uma abordagem branda, menos burocrática, em outras palavras, mais humanizada, o que quer dizer, voltada ao cuidado humano, às suas necessidades, peculiaridades, falibilidades, exigências, logo cumprindo preceitos não explicitamente postos nos normativos constitucionais, mas que se subscrevem em suas infindáveis entrelinhas: é preciso dar atenção ao ser humano. Nas últimas décadas do século XX e nos anos que se seguiram no século XXI, houve a ampliação das incomensuráveis variações do sistema capitalista que se espalham e impregnam uma nova perspectiva acerca do que é tempo, capital e vida. Atualmente, a teoria eficiente do que seria um Estado não goza de boa difusão, não apresentando absorção efetiva daqueles que o representam em suas mais variadas formas. Muito foi melhorado, contudo outro tanto ainda há de ser enfrentado. Em nada o modelo e a prestação estatal atual se comparam com a de séculos atrás, entretanto é necessário manter atenção às nuances da evolução para que não se fique estagnado no tempo aguardando a impulsão histórica para se ter mais desenvolvimento. Observância e autoaprimoramento devem ser práticas contínuas e fomentadas pela máquina estatal como um genuíno instrumento de mudança social, geração de valor e estruturação de uma nova “cultura organizacional” (OLIVEIRA, 2018, p. 145), até mais importante que a força das leis, por ser uma oscilação fluida, orgânica e sistêmica que emana da fonte daquele poder, o povo. Desta forma, a estrutura da prestação pública, principalmente ao que tange ao objeto deste trabalho – saúde –, deve ser repensada com vistas à renovação do sentido intrínseco do que é serviço público, tanto na visão daqueles que integram os mais variados órgãos e sistemas de prestação quanto na visão dos usuários, pois assim torna-se possível uma nova configuração na qual há uma troca simbiótica e igualitária entre prestadores e usuários. O caso estudado (Hospital de Clínicas da UFU / HC-UFU) não é diferente, portanto, apresenta inúmeros aspectos da dissonância mencionada em parágrafos anteriores. 2 PUBLICIDADE, HUMANIZAÇÃO E DIREITO À INFORMAÇÃO. O Estado é figura existente na sociedade através da permissividade silente e automática daquilo que se pode caracterizar como povo. Quando se adentra aos meios sociais, quer-se dizer, ao nascer com vida e adquirir assim sua personalidade de sujeito, é inevitável a sua respectiva integração em um sistema já pré-existente que, sem qualquer consentimento daquele que veio a lhe integrar, se vê detentor de direitos e de deveres os quais lhe são, muitas vezes, outorgados de modo irrenunciável. Diante dessa figura “onipotente” que é capaz de ditar e configurar toda a estrutura da existência de um indivíduo que venha a ser integrante do seu círculo de influência é necessário se ter estruturas claras para que, em contrapartida, o poder não seja absoluto e que, considerando a função primordial do Estado que é fazer gestão do patrimônio social do seu povo, se tenha instrumentos hábeis a possibilitar a fiscalização, tratamento digno e ciência das informações que sejam do seu interesse. Osvaldo Francisco Almeida Jr. (2009, p. 89-103) menciona o princípio da publicidade como o meio pelo qual a Constituição consagrou que os atos da Administração Pública devem merecer a mais ampla divulgação, isso porque possibilitaria, aos administrados, o controle da legitimidade da conduta dos agentes administrativos. E ainda mais, intitula a publicidade dos atos como único meio de se apurar a legalidade e eficiência que os reveste. Em complementação, Rafael Carvalho Rezende Oliveira (2018, p.98) diz que o referido princípio guarda estrita relação com o princípio democrático do art. 1º da Constituição da República, o que possibilita o exercício do controle social, que é fundamental em um Estado Democrático de Direito, sendo a regra a publicidade e o sigilo, a exceção. Por informação pode se entender como sendo “o conhecimento de fatos, de acontecimentos, de situações de interesse geral e particular que implicam do ponto de vista jurídico duas direções: a do direito de informar e a do direito de ser informado” (GRECO apud SILVA, 2005, p. 221). A primeira, segundo o autor, é a liberdade de manifestação do pensamento pela palavra, por escrito ou por qualquer outro meio de difusão; a segunda indica o interesse sempre crescente da coletividade para que tanto os indivíduos como a comunidade estejam informados para o exercício consciente das liberdades públicas. Desta forma, Gomes (2008, p.188) aponta que a informação é pública enquanto o conhecimento é privado. Pode se transmitir, distribuir e disseminar a informação, mas o conhecimento não faz este percurso. A sua circulação apenas é possível com a sua representação pela informação, assim como descrito por Le Roy (1997, p.71) “quando se deseja compartilhar conhecimento, este deve ser traduzido em informações, para que o destinatário possa absorvê-las e transformá-las em conhecimento – se ele quiser.” O direito à informação é uma extensão da publicidade, pois se trata de um aspecto um pouco mais restrito e limitado, ou seja, quanto às informações que sejam do interesse do usuário, tanto de repercussão pessoal quanto coletiva. Ante isso, resta apreender um significado mais profundo da palavra “informação”, qual seja um conjunto de dados e conhecimentos organizados que, em um contexto geral, possam reduzir a incerteza ou aprofundar os conhecimentos sobre um assunto de interesse a partir do que já se possui. Portanto, sob essa ótica, é possível inferir que “informação” é subjetiva, exige compreensão e possui um objetivo, consciente ou inconsciente (VALENTIM, 2008, p. 55). Acessar a informação na seara da saúde possui certos entraves linguísticos pela cientificidade dos termos utilizados. Contudo, Fortes (1994, p. 196) acrescenta que para que a informação seja compreensível, e que assim, de fato, possa ser considerada informativa, deve respeitar a capacidade receptiva daquele a quem a informação se dirige, quer se dizer, deve haver uma espécie de mediação por parte do emissor para que, a despeito de todo tecnicismo exigido para a prática, o conhecimento transmitido seja adaptado da melhor forma à pessoa, sempre adequando a informação à subjetividade daquela, descartando-se padrões e construindo o produto informativo de modo único ao destinatário, o que também se exprime como uma ferramenta de humanização. Além do conceito formal de “informação”, podemos tomá-la também através de um viés um tanto filosófico de empoderamento, ou seja, informação é poder, informar é atribuir poder. Portanto, conhecimento é um dos componentes fundamentais para a personificação do indivíduo e de sua propositura em sociedade. Nesse diapasão pode se extrair do art. 5º, XIV, da Constituição Federal que ter poder – na acepção aqui proposta – é um direito constitucional, assim o acesso à informação é meio hábil a possibilitar o completo exercício da capacidade civil e de cidadania do indivíduo. Em meio a toda essa dinâmica complexa da saúde, assunto recidivo é a questão da humanização que nada mais é do que o processo de evolução do Homem, pois ele tenta aperfeiçoar as suas aptidões através da interação com o seu meio envolvente. Para cumprir essa tarefa, os indivíduos utilizam recursos e instrumentos como forma de auxílio, sendo que a comunicação é uma das ferramentas de grande importância na humanização. Certamente humanizar é adaptar-se ao meio, e não o contrário, sendo a modificação do meio subproduto natural da adaptação, o que é uma das características mais notáveis das populações humanas, segundo o antropólogo Emílio Moran (1994, p. 201). Portanto se enquadrar no ecossistema em que se está inserto é algo natural à espécie, apesar de ser atributo que pode ser aprimorado. Compreender o meio, notar suas particularidades, especificidades e necessidades são gestos de humanização. Em suma, trata-se de, conhecendo a dor, o sofrimento e a moléstia, fazer o possível, obviamente reconhecendo suas limitações, para que essas lástimas possam ser mitigadas no outro, a fim de lhe proporcionar melhor qualidade de vida. Toda essa discussão se iniciou quando o direito à saúde passou a ser considerado um direito humano fundamental, isso através da Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Organização das Nações Unidas (ONU), após a II Guerra Mundial. A partir da década de noventa inúmeros países que eram membros da OMS assinaram declarações que envolviam o direito dos pacientes, principalmente no que diz respeito ao atendimento de qualidade, ao livre exercício da escolha individual e ao pleno acesso. Por fim, a temática da humanização do atendimento em saúde mostra-se relevante no contexto atual, uma vez que a atenção e o atendimento no setor de saúde, calcados em princípios como a integralidade da assistência, a equidade e a participação social do usuário, dentre outros, demandam a revisão das práticas cotidianas com ênfase na criação de espaços de trabalho menos alienantes que valorizem a dignidade do trabalhador e do usuário. (PUCCINI, 2004, p. 102) Importante ressaltar o vínculo da humanização da saúde com os princípios regentes do Sistema Único de Saúde (SUS), concebidos pela Constituição Federal em seu art. 198 e pormenorizada através da Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, em seu artigo 7º. Dentre os princípios elencados pelo legislador, o que mais corresponde com a humanização é o da integralidade, podendo esta ser compreendida como um atendimento que supra todas as necessidades das pessoas, o que exige integração de ações e a promoção à saúde e prevenção de doenças, o tratamento e a reabilitação. Além disso, esse princípio vincula a juntura da saúde com políticas públicas que assegurem uma gestão intersetorial que repercuta na saúde e na qualidade de vida das pessoas. Emilio Moran (1994, p. 232) define que o reconhecimento da necessidade do outro a partir da integralidade desencadeia atitudes e ações humanizadas, o que, portanto, permite inferir que a humanização é uma consequência da aplicação do princípio da integralidade. Essa expressão poderia ser percebida através de situações em que o atendimento não fosse voltado tão somente aos aspectos biológicos da doença, mas que fossem acrescidos aqueles atinentes ao ambiente em que o paciente vive, bem como que as facetas psicossociais envolvidas. Portanto no que diz respeito à humanização como produto do princípio da integralidade, torna-se indissociável a figura ampliada de saúde, que é dispositivo de oferta integrada de serviços de promoção, proteção, prevenção, recuperação e reabilitação, que permite enxergar no outro uma necessidade que precisa ser suprida, não somente em seu feitio médico, mas também na sua estrutura de composição que envolve fatores de amenização e paliativos. Desta forma, o trinômio (acesso à informação, publicidade e humanização) é fundamental para que o usuário do serviço público de saúde tenha sua dignidade garantida, sendo os aspectos mais afetados pela desestruturação da percepção do agente para com o público. 3 O CASO DO HOSPITAL DE CLÍNICAS DA UFU E A METOLOGIA DE ANÁLISE O Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, do ponto de vista interno, apresenta uma estrutura complexa no que tange os três pilares do artigo: publicidade, humanização e acesso à informação. Dito isso, o que se quer dizer é que com essas premissas sob foco seria possível mitigar, solucionar ou esclarecer uma série de dificuldades enfrentadas tanto pela Administração, quanto pela comunidade usuária dos seus serviços. Como metodologia foi realizada análise documental de relatos registrados no setor de ouvidoria, bem como que os relatórios gerenciais sintetizados pela unidade. A separação das informações foi realizada por meio de filtros computacionais que distinguem palavras-chave cadastradas no sistema, o que permitiu selecionar, com relativo grau de precisão, as manifestações que se encaixavam no perfil procurado. Posto isso, junto à ouvidoria da instituição em análise dos últimos cinco anos de registros, constatou-se que mais de 40% das manifestações direcionadas ao órgão estão, direta ou indiretamente, ligadas ao acesso à informação e publicidade. Outros 28% vinculam-se ao tema de humanização e que, via de regra, são repercussão da precariedade do cumprimento proativo dos outros dois institutos analisados neste artigo. Por meio de pedido de acesso à informação foi possível conseguir a relação das informações indispensáveis no sistema da ouvidoria. Com base na amostra obtida, ou seja, 7487 manifestações com relação ao tema do artigo, calculou-se, com a fórmula a seguir, a amostra necessária para um nível de confiança de 95% e uma margem de erro de 5%. Imagem I - Fórmula para cálculo de amostra Fonte: Aquarela. O resultado foi uma amostra de 239 manifestações que foram lidas e analisadas a fim de se obter o resultado apresentado neste artigo. Corroborando a isso, nos relatórios internos de transparência ativa da ouvidoria consta que dos 49 itens selecionados pela CGU para compor o formulário de transparência ativa do serviço público, o HCU preenchia, de plano, somente 6 deles, conforme anexo I. Com isso em mente já é possível vislumbrar, mesmo que superficialmente, a negligência ou omissão no cumprimento dos deveres de informação que são, notadamente, a base de uma democracia bem sucedida e eficiente. Por fim, tem-se que 69% das manifestações registradas ao órgão estão intimamente ligadas ao objeto deste artigo, em outras palavras, poderiam sequer existir caso houvesse um modelo de pensamento que favorecesse o tratamento dos usuários com base nas três diretrizes: acesso à informação, humanização e publicidade. 4 NECESSIDADE DE UMA MENTALIDADE SISTÊMICA Aprofundando a investigação das causas que geram essas deformidades na estrutura funcional do Hospital de Clínicas, uma sondagem nos arquivos da ouvidoria trouxe luz à questão: cultura. Segundo Bernhard Peters (1992, p.88), cultura pode ser entendida como senso comum, assim sendo um conjunto de símbolos e sentidos disponíveis publicamente e compartilhados pela sociedade ou por uma comunidade específica. Em outras palavras, cultura é o modo de agir e pensar coletivo que transcende o indivíduo, mas que é por ele replicado. Quando o locus do ambiente foi estudado tornou-se possível identificar um conjunto de padrões de crenças e comportamentos que direcionam a instituição em certo rumo, rumo esse que explica algumas possíveis causas do desalinho observado durante a análise macroestrutural com fundamento no que se chama Justiça Sistêmica ou Direito Sistêmico. Salmaso (2016, p.22) diz que a Justiça Sistêmica é introduzida no ordenamento por meio do Direito Sistêmico num sentido de que ela proporciona um olhar para ambas as partes, como se ela fosse a “pacificação”, não tendo como vencedor e nem perdedor nenhuma das partes, posto que norteia cada um a assumir suas responsabilidades no conflito ali apresentado, sendo muito mais a consciência de cada um em se colocar no seu devido lugar. A fala de Salmaso traz um fundamento primordial para compreensão do que é a diretriz deste estudo, portanto o posicionamento individual de cada um dentro de um sistema maior para que se tenha harmonia no todo. Melhor dizendo cada mudança em algum lugar dá origem a uma mudança no todo. Eva Madelung (2004, p. 55-56) descreve uma significação para a visão sistêmica de nossas vidas da seguinte forma: A abordagem sistêmica foca, principalmente no contexto relacional, um poder ou um fluido que atua entre as pessoas, quer isso seja ou não expresso pela comunicação verbal ou não-verbal. No núcleo do acontecimento se encontra o efeito recíproco, seja entre órgãos ou membros do corpo, partes da personalidade ou membros de uma família, uma tribo, um povo ou povos entre si. Cada pessoa está numa relação recíproca de modos múltiplos com seu meio-ambiente. O que um de nós faz atua sobre os outros membros de nossa família ou grupo, atua no todo e atua de volta em nós mesmos. Esse modelo é também válido para os diferentes níveis de nosso ser. Por exemplo, nossas ideias influenciam nossas ações e nossas percepções. Nossas sensações e percepções, ideias e ações influenciam o meio-ambiente e vice-versa. Cada mudança em algum lugar dá origem a uma mudança no todo. Diante da exposição de um conceito de sistema, como feito acima, é inevitável a existência de leis que regerão esse sistema, que buscarão a ordem e a harmonia. Logo, essas leis são tidas por naturais e existem de modo intuitivo e automático dentro de qualquer um. Primordialmente, as vinculações sistêmicas se dão no seio familiar. Com o avanço das relações de vida durante o crescimento social do indivíduo alguns outros vínculos sistêmicos são criados, gerando então laços em diversos nichos onde o indivíduo está inserido como, por exemplo, entre amigos e ambiente de trabalho (HELLINGER, 2007, p. 78-102). Em resumo, são três as leis sistêmicas que são o filtro de análise do caso concreto, sendo elas a lei da ordem, do equilíbrio e do pertencimento, as quais serão detalhadas posteriormente. Com fundamento na visão sistêmica e investigação documental, três teses foram elaboradas para analisar a correlação entre as situações constatadas concretamente e os princípios sistêmicos que as explicariam, sendo: I. Percepção de perdedor/subalterno frente à instituição; II. Percepção de vencedor/superior frente ao usuário do serviço; III. Percepção de herói frente ao usuário e a instituição. Os três itens muitas vezes estão correlacionados e se complementam em diferentes fases da vida daqueles que compõem o serviço público. Portanto, o que se pôde observar foi que essas percepções nos atores do serviço público geram distorções quanto à sua visão como parte do todo, como parte do organismo que gira a roda da máquina pública. O posicionamento inadequado do ator no organismo que compõe gera um desequilíbrio que, por consequência, gera prejuízos a toda estrutura, seja ela de funcionários, servidores, cidadãos, usuários ou financiadores. Isso é descrito pela Lei da Ordem segundo a qual se deve respeitar a precedência e a sucessão, a hierarquia do maior e do menor, não existindo sobreposição, todavia harmonia e paridade, não havendo melhor ou pior, subalterno e superior, somente partes essenciais de uma mesma engrenagem codependente, mútua e isoladamente. Tal lei é fundamental para solucionar parte das três teses elaboradas, pois, fica claro, que todas derivam de um mau posicionamento, ou melhor, de uma percepção equivocada de posicionamento no sistema. Um segundo aspecto sistêmico que corrobora com a reestruturação é a Lei do Pertencimento que, precipuamente, apregoa a conexão entre todos, independentemente de aceitação. Diante disso, o pertencer possibilita que o ator se sinta parte do sistema, permita que outros com mesmo direito também estejam integrados e inibe a nossa tendência a sobrepujar, excluir ou julgar os outros. Isso é de fundamental importância para dirimir os conflitos interpessoais, principalmente entre aqueles que trabalham juntos. Com isso em mente é possível discutir melhor as três teses levantadas acerca do comportamento lesivo dos agentes públicos na instituição estudada. Sendo assim, primeiramente, a visão de “perdedor” frente à instituição é uma dissonância quanto às duas leis mencionadas anteriormente, visto que não é possível ser “perdedor” quando não se está competindo, ou seja, quando se está em uma posição de igualdade junto à instituição. Desta forma, a sensação de estar competindo contra o que está hierarquicamente acima de você gera um sentimento de frustração e incapacidade, até porque não será possível “ganhar”, pois um está acima do outro, um é grande e o outro é pequeno, tendo cada um o seu devido lugar no sistema. A delusão de ser um “perdedor” em face do órgão público cria um atrito infrutífero que gera prejuízos para todos os lados, fazendo com que se tenha a sensação de necessidade de “lutar” contra o sistema, de se colocar em uma posição que não é sua, de estruturar o sistema à sua maneira em detrimento à vontade alheia. Assim o que se tem é uma prestação de serviço falha, deslocada, carregada de ressentimentos e angústias, o que sobrecarrega o próprio autor desiludido quanto o receptor desavisado. Por outro lado, a visão de superior e herói frente ao usuário/instituição se mescla em diversos sentidos, principalmente no posicionamento inadequado, do qual o resultado inevitável é frustração. Logo, aquele que se comporta como superior se vê em um lugar que não lhe pertence, se vê grande sendo pequeno, se vê único sendo semelhante, e desta forma origina uma dissociação na imagem de si que deveria ser cultivada: a de uma pessoa igual. Todos são seres humanos, dotados de potenciais capacidades que carecem de fomento com a distinção de que um está para servir e o outro está para ser servido, naquele momento, portanto, um está para dar enquanto o outro está para receber, é o que descreve a Lei do Equilíbrio. Feita essa introdução já é possível discutir a relação das leis com o que foi extraído dos relatórios analisados. Inicialmente é importante destacar que as teses foram fundamentadas em três personagens comuns nas 239 manifestações lidas, ou melhor, os agentes, às vezes também os usuários, se comportam ora como sujeito oprimido (perdedor), ora como opressor (vencedor) e ora como heróis da narrativa, apesar deste último ser menos frequente. 4.1 DESENVOLVIMENTO DO PENSAR SISTÊMICO E SUAS IMPLICAÇÕES PRÁTICAS Descritas as leis é possível partir para a análise do caso. O Hospital de Clínicas convive, conforme relatos registrados na ouvidoria da instituição, com 3 espécies principais de problemas: 1º relacionado à transparência e informação; 2º relacionado ao trato pessoal; e 3º relacionado à esfera material. Os dois principais problemas iniciais podem ser resolvidos, ou minimizados, através da aplicação dos princípios sistêmicos, no sentido de que ao se ter consciência da sua posição de ordem nessa cadeia você se torna mais sensível aos sofrimentos alheios, além de saber exatamente os limites que devem ser postos e o que deve ser feito. Ademais, o posicionamento adequado permite que o agente se enxergue como ele realmente é, ou seja, um prestador de serviços, um servidor público, portanto um agente à disposição da utilidade pública, tendo sua primazia selada na transparência e na informação, até porque se está zelando do que é da coletividade e em prol desta (HAUSNER, 2010, p. 82-108). Antes da aderência à rede de ouvidorias da Ebserh, cerca de um terço das manifestações registradas não obtiveram resposta com a justificativa de que “não mereciam resposta”. Isso quer dizer, que houve um juízo de valor acerca do que deve ou não ser respondido fora dos critérios objetivos da Lei nº 13.460 de 2017. Essa postura denota superioridade, uma percepção de que sua pessoa não pode ser confrontada, assim como que determinadas pessoas não são dignas de sua atenção. Essa visão cria um grupo de cidadãos de segunda classe que se encontram abaixo daquele agente, consignando uma ideia de desapropriação dos direitos mais básicos daquele indivíduo, inclusive os de informação. Portanto, fica perceptível um movimento de exclusão de faixas de pessoas onde se discrimina o valor de cada uma delas. Outra face desta mesma moeda está disposta naqueles que se sentem inferiores à instituição, causando desconforto para o agente no sentido de se sentir explorado, o que ocasiona um sentimento de retaliação frente ao órgão ou de quem dele precisar. Por se ver abaixo de onde acredita que deveria estar o agente confronta a tudo e todos no intuito de ferir por se sentir ferido. O sentimento de deslocamento é evidente, sendo que em muitos casos também pode ser traduzido em atos de improbidade administrativa, como ocorre nos bastidores do Hospital de Clínicas. Quanto ao 3º problema mencionado anteriormente nada se pode fazer para evitá-los no sentido restrito de análise. Portanto, a aplicação dos princípios na mentalidade dos agentes envolvidos não impede que aparelhos estraguem, recursos acabem ou que produtos cirúrgicos se esvaiam, todavia pode mudar a forma de atuação do agente quando esses infortúnios acontecerem. Explicando melhor, a ocorrência das situações enquadradas como fortuitos materiais geram angústia e desalento naqueles que precisam de uma prestação do Estado, o que por si só já é suficiente para gerar um conflito entre os envolvidos. O que acontece, com frequência, é o confronto entre usuário e prestador sem que qualquer uma das partes exerça a sensibilidade para tatear o caso. Tendo-se em mente as Leis Sistêmicas o prestador público por estar em mesma ordem que o usuário, pertencer ao mesmo grupo e necessitar de reequilibrar a relação, poderia contornar o embate, mitigar a angústia e agregar valor à vida daquele que recebe, tão somente se posicionando de igual para igual, sendo transparente, prestativo e resolutivo, assim como apregoado no imperativo categórico de Kant: “Existe só um imperativo categórico, que é este: Aja apenas segundo a máxima que você gostaria de ver transformada em lei universal.” (KANT, 2005, p. 71). Enfim, a instituição analisada apresenta dificuldades em ter seus agentes posicionados em seus devidos lugares. Há de praxe, uma sensação constante de não estarem sendo satisfeitos ou de serem a salvação, o que justificaria atos de arrogância, práticas indevidas dentre outros atos de proveito próprio ou que “cortem” caminho. É fundamental que os agentes públicos façam uma reavaliação de autoconhecimento para que se confrontem com o sentido pleno de pertencer a um sistema. A visão puramente individual é prejudicial quando se opera em conjunto, pois turva o caminho que deverá ser percorrido e cria falsas percepções que, por conseguinte, cria falsas conclusões (HELLINGER, 2005, p. 35-45). Em suma, a incorporação dos preceitos sistêmicos traz consciência do seu papel no sistema onde se está inserto, além da compreensão de sua função individual, coletiva e daqueles que o antecederam no sistema. A aplicação dessa lógica permite ao agente enxergar todo o processo com o vislumbre de continuidade e não de extirpação. Noutras palavras, não é preciso ser herói de nenhuma história, tão somente ator de sua própria linhagem, onde o que se faz é com respeito aos que estão acima, abaixo e junto com o agente; basta a execução simples de cada função individual para o qual se foi designado, executando-se com respeito, dedicação e equilíbrio, tendo-se em mente que o que se faz não é feito para o outro e sim para o próprio agente, pois todos são parte de um mesmo organismo, apesar das diferenças e da heterogênea composição. Amparando-se nisso o resultado de ver o outro como igual e digno propiciará solução aos conflitos observados neste artigo, sendo que a noção de pertencimento será guia para as práticas dos agentes públicos que se fundamentarão naquilo que gostariam que fosse ofertado para si (PATON, 1971, p. 112-118). Na prática, o que se espera é a conscientização de todos para que abandonem a postura de vítimas ou heróis, de sujeitos merecedores de mais ou menos frente aos demais, porque assim será possível enxergar as coisas como elas são e permitirá com que cada um faça a sua função no sistema sem o sentimento de perda, prejuízo ou ressentimento, o que será proveitoso ao sistema de modo geral. Dito isso a implementação do pensar sistêmico pode ser induzida por diversos vetores, tanto individuais quanto coletivos; dentre eles a gerência hospitalar com seu poder diretivo orientando a participação em cursos, workshops e seminários que buscassem aumentar a oferta de conhecimento sobre o tema; ou por meio de criação de uma comissão para regulamentar a utilização da Constelação Sistêmica na solução de conflitos dentro do HC-UFU, a exemplo do que feito pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais em sua portaria 3923/2021, que instituiu o uso da Constelação na Central de Conciliações – CEJUSC. Observando o cenário, vê-se a diversidade de exemplos que sustentam os benefícios da prática de Constelação. A cúpula diretiva da instituição pode seguir, inclusive, o exemplo do Tribunal de Justiça do Amapá que, com seu Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec), foi destaque no CNJ. Baseado nesses exemplos é coerente inferir que os comportamentos desvirtuosos ao bom funcionamento da repartição, ou melhor, os comportamentos desarmônicos, poderiam ser alinhados com as práticas Sistêmicas e o reconhecimento das leis de ordem, equilíbrio e pertencimento. O pensar sistêmico é importante para que haja o reconhecimento de ser igualmente digno, logo merecedor do mesmo tratamento, da mesma condição genérica, o que, como tem feito em outros ambientes em incorporação da prática, elevaria a qualidade do atendimento, do tratamento, de vida das partes, reduziria conflitos e forneceria uma seara propícia para resolução de outros. 5 CONCLUSÃO O Hospital de Clínicas é uma grande instituição que apresenta um índice relativamente alto de demandas registradas em sua ouvidoria. Por meio da análise documental desses registros foi possível constatar que quase dois terços dos registros eram devidos à falta de boas práticas de atendimento e acompanhamento, bem como à falta de transparência e humanização do atendimento. Os preceitos da Justiça Sistêmica trazem uma dinâmica diferente daquela que as pessoas estão acostumadas, onde o individual consegue ser tocado de modo independente do coletivo. Na contramão desse disparate, o que se extrai dos conhecimentos sistêmicos é que o individual está atrelado ao coletivo de uma forma sensível, e que não é possível desvencilhar-se dos “erros” sem entender os mecanismos que movem esse sistema. Quando é possível realizar essa autocrítica e, inclusive, a introdução desses princípios na vivência cotidiana do serviço público, há uma transformação da relação do agente para com ele mesmo, com a instituição e com o usuário do serviço, o que, por consequência inevitável, gera satisfação própria e maior harmonia no todo que passa a funcionar de modo mais fluido. Em conclusão é imperioso haver um movimento por parte da gestão hospitalar ou da sociedade civil para fomentar a incorporação das práticas Sistêmicas por meio da participação passiva em seminários e workshops, bem como que da participação ativa em sessões de Constelação Sistêmica. Desta forma, seria possível estimular harmonia no ambiente hospitalar com ganhos na qualidade de vida dos trabalhadores da saúde e da comunidade envolvida. Anexo I 3 -AvaNação da Comroladoria Geral da Uniao. Otantidade de kens Avaüados pela CGU: 49 Ouantidade de Registros avaliados pela CGU como 'Cumpre': Ouantidade de Registros avaliados pela CGU como ’Nào Cumpre’: 43 Ouantidade de ftegistros avaliados pela CGU como 'Cumpre O Parcialmente‘: REFERÊNCIAS ALMEIDA JUNIOR, O. F. Mediação da informação e múltiplas linguagens. São Paulo Pesquisa Brasil Ciência. 2009. BRASIL. Lei nº 13.460, de 26 de junho de 2017. Dispõe sobre participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública. Disponível em:
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